Proibido Proibir
Sartre
Capítulo 1
- Foto 3 x 4 do nascimento do século
(Do livro: "É
proibido proibir - Sartre", Fernando José de Almeida,
FTD, São
Paulo, 1988, p. 6-15)
Foi quase um aborto
o nascimento deste nosso século. Uma infinidade de conflitos
regionais culminou com a explosão de um novo modo de fazer
guerra: a 1ª Guerra Mundial, iniciada em 1914. Nunca tantos
mortos (20 milhões de soldados e civis, por bombardeios,
massacres, fome ou epidemias), nunca tanta sofisticação
de gases asfixiantes, metralhadoras, balas explosivas, canhões
e tanques.
Em 1917 estourou a
Revolução Russa, prenúncio de uma nova
sociedade, radicalmente diversa da capitalista, também com
milhões de mortos, deportados e mutilados.
Em 1929 a quebra da
Bolsa de Valores de Nova York carregou e cores sombrias esse cenário,
causando desemprego em massa, fome, extorsões e contrabandos,
além de pressões econômicas das nações
ricas sobre os países pobres.
Mal refeito da 1ª
Guerra e dos abalos da economia, o mundo se envolveu, em 1939, numa
2ª Guerra Mundial, ainda mais destruidora e cruelmente
sofisticada. Os tiros dos campos de batalha terminaram em 1945, mas o
conflito ainda permaneceu aberto, pulsante como uma chaga viva.
Não contentes
com os 45 milhões de motos, os interesses das nações
e de sues dirigentes inauguraram a guerra fria. O clima da guerra
fria se caracterizou pelo medo generalizado diante da constante
ameaça de uma guerra nuclear, acusações mútuas
entre americanos e soviéticos, espionagem e contra-espionagem,
perseguições ideológicas e censura às
artes e ao pensamento. Mas não pense você que isto foi o
fim do mundo.
Em meio aos gritos
de dor, debaixo dos bombardeios e contando com recursos de milhões
de dólares, a ciência e a tecnologia se desenvolveram
espantosamente. Dia e noite trabalhavam para (além de
artefatos bélicos) produzir invenções que
trouxessem benefícios para a humanidade.
Muita guerra,
muita tecnologia: cadê o homem?
O que o homem não
conseguiu nos 100 mil anos de sua existência sobre a Terra,
alguns países da Europa e os EUA conseguiram nos primeiros 50
anos do século XX. Máquinas novas, cidades de
concreto, TV, vacinas, automóvel, avião, foguete,
domínio da energia atômica, informática...
No entanto o homem
científico e a sociedade tecnológica não
cumpriram uma promessa esperada: a melhoria da vida humana.
E sabe por quê?
Porque junto com o conhecimento exato produzido pela ciência -
quase urna deusa - veio um monte de bugigangas tecnológicas,
que tinham por trás um projeto de dominação
política e econômica. As guerras foram uma forma de
reforçar essa dominação.
Afinal se percebeu
que as certezas da ciência não serviam em nada à
causa de uma sociedade mais humana. Os homens da década de 50
não poderiam pensar de outro modo:
"Que sujeito é
este que domina as distâncias e se comunica em segundos e tem
poder de explodir várias vezes este planeta e, contudo, não
se conhece?".
Então
tornou-se clara a mentira da promessa feita por Augusto Comte
(1798-1857) de que uma era da ciência corresponderia a um
grande avanço e ao amadurecimento definitivo da
humanidade.
"Ordem
e progresso!" foi a proclamação de um Comte cheio
de esperança. Mas que nada! Ordem: em que direção?
Progresso: para quantos? O mundo (salvo umas privilegiadas exceções
que tentavam impor-se como regras) caminhava para o caos, para o
agravamento da dominação e do extermínio.
Poucas nações,
poucos grupos dominavam quase toda a riqueza, os bens culturais e o
poder político do mundo. Após as duas guerras mundiais,
a fé do homem em si mesmo e na sua obra era decepcionante! A
guerra destruira em pouco tempo agrupamentos humanos, realizações
materiais e tesouros de arte que demoraram séculos para se
constituir.
|
Inverter a
História
Alto lá!
Os jovens e os
pensadores dos anos 50 precisavam achar a ponta desse emaranhado,
para ajudar a mudar o curso dessa história. Ao verem a triste
situação do mundo e de si mesmos, eles se perguntavam:
tanta busca, tanto sonho, tanto amor, tanto trabalho, para NADA?
Onde está o
bem? Qual é a linha que o separa do mal? Haverá uma
saída para evitar que esta aventura de viver não
termine na morte com nossas próprias unhas?
Onde está a
verdade: na ciência? no ser humano?
Uma certeza: a
ciência não responde a tudo. Ela não é
tão autônoma corno aparentava, mas está amarrada
a um projeto de sociedade. Há de se buscar na Filosofia um
conjunto coerente de resposta,, para o dilema de viver.
A Filosofia apareceu
como uma nova paixão capaz de indicar novos caminhos. A,
sabedoria dos jovens pensadores angustiados percebia que a vida é
incerta, é ambígua. Nada é como nos ensinavam os
velhos filmes de caubói, em que o chapéu do herói
metido em brigas jamais cai, seu revólver jamais descarrega e
ele sempre acaba dando um beijo (cinematográfico...) em sua
noiva.
Hollywood punha
divisórias na tela: de um lado ficava o índio, sempre
traidor e ignorante; do outro, o branco, doce conquistador (de
mulheres e terras alheias), acompanhado de crianças lourinhas
e música romântica. O bem e a mentira eram claramente
separados. O progresso sempre estava ao lado da ciência.
enquanto outras dimensões humanas eram classificadas de
bruxaria, e por isso olhadas com surpresa.
Não é
isso que acontece na vida real.
Dentro de cada
indivíduo e na trama da sociedade, a realidade é
ambígua: o bem e o mal andam de mãos dadas,
misturam-se. Ora odiamos, ora amamos. O mesmo bandido que rouba
latifundiários tem bons sentimentos com as crianças, e
o justiceiro louro, montado em seu cavalo idem, pode ser mesquinho
com seus pais e ter medo de quarto escuro.
Quem está com
a verdade? Quem está com a mentira?(O que você acha?)
|
O gosto pela
evidência e o sentido da ambigüidade
A realidade humana é
cheia de contradições: a própria vida está
cheinha de morte, e seus poros transpiram dores:
"A hora do
encontro é também despedida
chegar e partir
são dois lados da mesma viagem
o trem que chega
é o mesmo trem da partida
a plataforma
desta estação e' a vida. "
Milton
Nascimento
Apenas um bisturi
mental é capaz de separar a verdade da falsidade ou o belo do
feio. Essa cirurgia é feita utilizando-se o pensamento. Cada
um de nós pode entender com clareza o que é bem e o que
é mal. Só que isso não basta. Viver é
diferente de entender!
Na
primeira metade do nosso século, os filósofos ainda
estavam preocupados em separar o certo do errado, em classificar quem
era sujeito e quem era objeto: "Há diferença entre
o eu que pensa e as coisas exteriores ao pensamento?".
Esses pensadores foram atraídos pela clareza e buscaram
iluminar a existência humana.
Mas logo a
existência se manifestou escorregadia: ela escapa de cada rede
que a razão lança sobre ela para capturá-la e
estudá-la.
Enterrado nos
escombros de um mundo que desabou, para o angustiado homem do
pós-guerra desvendar a vida humana transformou-se num questão
de sobrevivência.
É
por isso que os existencialistas, filósofos por
excelência dos anos 50, se definiram como aqueles que têm
"o gosto pela evidência e o senso da ambigüidade".
Daqui para frente vamos falar de um homem assim: angustiado. Nele
você certamente encontrará muito do conhecimento de cada
um de nós, do nosso tempo e do nosso mundo.
Os existencialistas
foram muitos e de várias tendências. Alguns são
considerados precursores: Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Eles
forneceram muitos dos fundamentos teóricos de Sartre. Outros
combateram na França pelos ideais existencialistas juntamente
com Sartre. São eles: Emmanuel Mounier, Gabriel Marcel, Albert
Camus, Simone de Beauvoir e vários outros..
|
Não há
propriamente o existencialismo, como se fosse uma escola filosófica
definida. É mais correto falar-se em "clima
existencialista" já que cada pensador dessa corrente tem
uma abordagem original. Mas há um núcleo de
preocupações e temas fundamentais, comuns à
maioria dos existencialistas:
a razão
humana é impotente para resolver todo, os problemas da
existência;
o homem está
sempre se fazendo e refazendo;
o ser humano é
frágil;
a realidade nos
aliena, nos toma estranhos a nós mesmos;
a morte é
urna presença constante na vida;
não se
pode fugir da solidão;
a existência
é um mistério;
o Nada provoca o
ser humano a avançar.
Antes
de serem uma filosofia do mundo, ou das coisas, as idéias
existencialistas pretendem ser uma filosofia do homem. Não
são reflexão de um homem perfeitamente organizado,
ideal, passível de ser analisado e compreendido. Trata-se de
uma filosofia de um homem misterioso, surpreendente, dilacerado por
contradições insolúveis.
Vamos Refletir
1. Quais os grandes
dilemas humanos de nossa década, em nosso país e no
mundo todo?
2. Quais os dilemas
do jovem brasileiro atual?
(Reflita
individualmente e, em seguida, discuta as questões acima com o
grupo de trabalho)
3. No texto do
filósofo Roger Garaudy (anexo), identifique as preocupações
destacadas neste capítulo.
4. No
texto Moral da ambigüidade (anexo), de Simone de Beauvoir
- companheira de toda a vida de Sartre -, você tem um bom
exemplo da vertente feminina do existencialismo, numa reflexão
sobre a fase que você está vivendo.
Propostas de
Atividade
Fazer uma pesquisa,
ou entrevista com cientistas, sobre os tipos de problema
que a ciência
resolve e tipos que não soluciona.
Anexos
1.
Perspectivas
Roger Garaudy
"A humanidade
inteira, se continuar a viver, não será simplesmente
porque nasceu, mas porque terá decidido prolongar sua vida.
Não mais existe espécie humana. A comunidade que se
fez guardiã da bomba atômica está acima do reino
natural, porque é responsável por sua vida e por sua
morte; a cada dia, a cada minuto, será preciso que consinta em
viver. Eis o que experimentamos hoje, na angústia. Nosso
mundo é uno. Mas é um mundo dilacerado. Este mundo é
uno porque o desenvolvimento da técnica e da produção
engendrou um mercado mundial, a economia de um mundo fechado no qual
o destino de cada homem depende de fato Econômica, política,
moralmente, do de todos os outros.
Política,
moralmente, a vida cotidiana de cada homem sofre a ressaca das mais
longínquas: na Bolsa de Nova York, uma manifestação
em Tóquio, um plano econômico em Moscou, uma revolta na
África ou na Ásia. As crises tornaram-se mundiais, as
guerras também.
Mas esta
interdependência universal não é uma
solidariedade universal. Está feita de contradições
e conflitos. A universalidade só se exprime concretamente
porque, doravante, todas as lutas se desenvolvem em escala
planetária: as lutas de classe, as lutas nacionais, as lutas
ideológicas.
Nenhum
conflito tem caráter regional. Nenhuma responsabilidade tem
caráter limitado. Nenhuma liberdade é solitária.
De direito, estamos todos implicados na grande contestação
do mundo. A história o quis assim. Estamos aí e não
podemos fazer de outro modo. A responsabilidade é pessoal,
ninguém pode furtar-se a ela."
( Perspectivas do
homem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968,
p. 5)
2. Moral da
ambigüidade
Simone de
Beauvoir
(Para
a criança) "as invenções humanas - as
palavras, os costumes, os valores - são fatos consumados
inelutáveis como o céu e as árvores, ou seja, o
mundo em que vive é o mundo do sério, já que o
específico do espírito de seriedade é considerar
os valores como coisas estabelecidas. (... ) o mundo verdadeiro é
o dos adultos, onde não lhe é permitido senão
respeitar e obedecer. Ingenuamente vítima da "miragem do
para-outro, crê no ser dos seus pais, dos seus
professores: considera-os como as divindades que estes procuram
vãmente ser e cuja aparência se comprazem em imitar
diante de olhos ingênuos. As recompensas, as punições,
os prêmios, as palavras de elogio ou de censura insuflam na
criança a convicção de que existe um bem, um
mal, fins em si, como custe um sol e uma lua. (... ) E é nisto
que a condição da criança (ainda que possa ser,
em outros aspectos, infeliz) é metafisicamente privilegiada: a
criança escapa normalmente à angústia da
liberdade; pode ser, a depender de sua vontade, indócil,
preguiçosa; seus caprichos e suas faltas dizem respeito
somente a ela, não pesam sobre a terra, não poderiam
perturbar a ordem serena de um mundo que existia antes dela, sem
ela, no qual está em segurança por sua própria
insignificância; pode fazer impunemente tudo o que lhe agradar,
sabe que nada acontecerá por causa disso, tudo já está
dado; seus atos não comprometem nada, nem mesmo a si própria.
(...)
é muito raro que o mundo infantil se mantenha além da
adolescência. Desde a infância, já suas falhas se
revelam; no espanto, na revolta, no desrespeito, a criança
pouco a pouco se interroga: por que é preciso agir
assim? A quem isto é útil? E, se ou agisse de outra
forma, que aconteceria? ( ) E quando chega à idade da
adolescência, todo seu universo se põe a vacilar, porque
percebe as contradições que os adultos opõem uns
aos outros, bem como suas hesitações, suas fraquezas.
Os homens cessam de lhe aparecer como deuses, e, ao mesmo tempo, o
adolescente descobre o caráter humano das realidades que o
cercam: a linguagem, os costumes, a moral, os valores têm sua
fonte nessas criaturas incertas; chegou o momento em que será
chamado a participar também dessa operação; seus
atos pesam sobre a terra tanto quanto os dos outros homens, ser-lhe-á
preciso escolher decidir. Compreende-se que tenha dificuldade em
viver esse momento de sua história e reside nisso, sem dúvida,
a causa mais profunda da crise da adolescência: é que o
indivíduo deve, enfim, assumir a sua subjetividade. De certa
forma, o desabamento do mundo sério é urna libertação.
Irresponsável, a criança se sentia também sem
defesa em face das potências obscuras que dirigiam o curso das
coisas. Mas, qualquer que seja a alegria dessa libertação,
não é sem uma grande confusão que o adolescente
encontra-se jogado num mundo que não é mais
completamente feito, mas a fazer, dono de uma liberdade que nada mais
prende, abandonado, injustificado. Em face dessa situação
nova, que pode ele fazer? É nesse momento que se decide; se a
história, que se pode chamar natural, de um indivíduo -
sensualidade, seus complexos afetivos etc. - depende sobretudo de sua
infância, é a adolescência que surge como o
momento da escolha moral: então, a liberdade se revela e é
preciso decidir que atitude tomar diante dela.( ... ) A infelicidade
que vem ao homem do fato de ele Ter sido uma criança consiste,
pois, em que sua liberdade lhe foi inicialmente ocultada e em que ele
guardará toda sua vida a nostalgia do tempo em que ignorava as
exigências dela".
Moral da
ambigüidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970, p. 29ss.
Capítulo 2
- Sartre entra em cena
(Do Livro "É
proibido Proibir - Sartre", Fernando José de Almeida,
FTD, 1988, pág. 16-27)
Jean-Paul Sartre
sempre me fascinou pela sua paixão tranqüila e insensata
pelo viver. Ele reuniu em si princípios de vida que quase
nunca andam juntos... ao menos na figura de um filósofo.
Sartre foi um soldado e um pensador corajoso; foi um boêmio por
princípio de prazer e de liberdade; foi uni assíduo de
panfletos e barricadas; literato explosivo e professor sutil e
extasiante, desde os 26 anos.
Nascido em Paris em
1905, de saúde frágil, filho de família
burguesa, jamais imaginaria que, como membro da Resistência
Francesa, viria a combater violentamente a ocupação
nazista da França, entre 1940 e 1944. Durante a 2ª Guerra
Mundial, serviu no exército como meteorologista na região
de Lorena, entre 1940 e 1941. Feito prisioneiro, ficou na cidade
alemã de Tréves, onde Karl Marx nasceu. Fugiu de lá
utilizando-se de documentos falsos.
Nosso filósofo
também esteve na linha de frente dos mais importantes
acontecimentos políticos da França, nos últimos
30 anos. Defendeu a libertação da Argélia,
então uma colônia francesa, que só se tornou
independente em 1962, após violenta guerra que durou 8 anos.
Em maio de 1968 o
velho professor, aos 63 anos, junto com seus alunos, empilhou os
paralelepípedos tirados das ruas de Paris para construir as
"barricadas do desejo", símbolo de um movimento
estudantil que pretendia revolucionar todos os aspectos da vida do
país.
Mas foi através
de sua permanente dedicação à literatura que
Sartre pretendeu atingir três objetivos principais na vida:
realizar sua paixão pela arte, comunicar-se com os homens e
mulheres de seu tempo, virar as estruturas deste mundo de cabeça
para baixo.
Para ele, literatura
não era um luxo, nem uma diversão, mas uma arma
política, uma armadilha Para colher coisas vivas:
Por ter
descoberto o mundo através da linguagem tomei durante muito
tempo a linguagem pelo mundo. Existir era possuir uma marca
registrada, alguma porta nas tábuas infinitas do Verbo, gravar
nelas seres novos - foi a minha mais tenaz ilusão -, colher as
coisas vivas nas armadilhas das frases.
A partir de 1940
Sartre retomou as aulas que havia iniciado em 1931 e largado várias
vezes para continuar seus estudos. Nesse tempo, começou a
escrever suas obras mais marcantes.
Ele
organizou grupos clandestinos, dedicados a atividades literárias,
jornalísticas e teatrais. Fundou o grupo "Socialismo e
Liberdade", integrando o Comitê Nacional dos Escritores,
colaborou nas Publicações clandestinas O Combate e
Cartas Francesas. Sob sua liderança, foi fundada em 1944
a revista de maior importância das últimas décadas
na França: Tempos Modernos.
A obra literária,
teatral, jornalística e filosófica de Sartre fez dele o
mais importante escritor francês deste século.
Aos saltos
Não
se pense que Sartre viveu como alguém que cumpre um horário
rígido. Sua trajetória não foi certinha, mas
realizou-se aos saltos. Ele mesmo confessou que era um jovem
burguês, brioso, espirituoso, anarquista, sutil, paradoxal, mas
que não parecia partilhar dos sofrimentos dos homens.
Enfim,
um jovem classe-média, talvez parecido com você. Sartre
se dedicou a ser um professor, brilhante e bem-falante, curtindo nas
horas vagas suas aulas de boxe, o desenho animado, o cinema.
Sobretudo, era fã apaixonado do jazz.
Mas a 2ª guerra
Mundial (1939-1945) o empurrou violentamente para a idade da razão.
Ele reconheceu que
Entre 1939 e 1945
não fazia política. Me ocupava de literatura, vivia
com meus amigos, era feliz... Subitamente estourou a guerra e, aos
poucos, sobretudo depois da derrota e da ocupação
alemã, eu me senti completamente privado do mundo que eu
acreditava ter diante de mim. Encontrei-me diante de mundo de
miséria, de malefícios e desespero. Mas recusei esta
possibilidade de desespero que era tão freqüente à
minha volta e aliei-me a amigos que não se desesperaram, que
pensavam no que era possível fazer, lutar por um futuro feliz,
embora no momento parecesse não existir absolutamente qualquer
possibilidade de existência para este futuro.
(O Testamento de
Sartre. Porto Alegre. L& PM Editores, 1986, p. 62)
Obras
Em
1936 ele escreveu duas obras: A imaginação e
Melancolia, que depois se intitularia A náusea. Nelas
ele se definiu como pensador. Iniciou a produção de seu
trabalho mais filosófico, até aquele momento,
fazendo uma análise da imaginação.
Ao contrário
das filosofias da época, que valorizavam o pensamento, a
razão, ele refletia sobre um elemento aparentemente menos
importante: justamente a imaginação. Nessa tarefa, ele
adotou, à sua maneira, um método conhecido como
Fenomenologia.
Mas
o que é Fenomenologia? A grande ambição
deste jovem filósofo era falar das coisas em estado puro, tais
como as via e as tocava, sem serem "infeccionadas" pela
cultura ou pelas interpretações dos outros. Isso era
para ele a Filosofia. A Fenomenologia buscava a proeza de ultrapassar
as dificuldades encontradas por outras filosofias, como o idealismo e
o materialismo, na sua tentativa de explicar totalmente o mundo.
O idealismo ensina
que as únicas coisas que existem são as idéias.
Só as idéias têm a existência perfeita.
Nosso corpo e apenas pálido e imperfeito conhecimento delas.
Enfim, o real está na consciência e no pensamento de
cada um.
Para o materialismo,
ao contrário, o mundo econômico e social engloba toda a
realidade, não existindo prioritariamente nada fora da
economia e das organizações materiais de sociedade.
Husserl (1859-1938),
pai da Fenomenologia, elimina a oposição entre
consciência e matéria, dizendo que as idéias só
existem porque são idéias de alguma coisa - "Toda
consciência é consciência de alguma coisa".
Não podendo ser separadas, elas constituem uma única
coisa "o fenômeno".
Sartre
se apaixonou pela Fenomenologia. Conseguiu uma bolsa de estudos e foi
para a Alemanha estudá-la, entre 1933 e 1934. Neste período,
testemunhou a ascensão de Hitler. Entre 1936 e 1938, foram
publicados A Náusea e o Muro, que projetaram Sartre no
mundo do drama literário. Com esses dois romances ele
inaugurou uma forma de expressão do pensamento, utilizando-se
de diários íntimos, romances e ensaios, em que as
idéias filosóficas ganham corpo nos seus personagens.
Esses personagens não deixavam de ser um eco da vida pessoal
do próprio Sartre.
Em
1943 foi encenada em Paris a peça As moscas, baseada numa
lenda grega. Nela Sartre apresenta arte aquilo que as nações
invadidas, ou então violentadas por governos totalitários,
têm de aprender a fazer. Dentro daquele momento histórico,
com alemães nazistas e colaboracionistas (traidores) franceses
rondando cada canto da vida da França, As moscas explodiu
corno uma conclamação à resistência.
Fico a imaginar a
emoção do público, dos atores e do próprio
ator diante da ação dramática que se desenrola
no palco, ameaçada por um permanente risco de ser reprimida.
Em seu enredo, a peça fala de um comandante, Egisto, que
tomava o poder na antiga Atenas com a ajuda de colaboracionistas,
representados pelo personagem Clitemnestra. As moscas representam a
praga do medo, que tomou conta dos franceses. Orestes, o líder
da resistência, conclama à luta contra os invasores.
O
Ser e o Nada, escrito em 1943, é seu mais importante
trabalho especificamente filosófico. Nessa obra está o
fundamento teórico para afirmações sartrianas
que serão encontradas em todos os seus trabalhos políticos
ou literários.
Eis algumas das
principais obras de Sartre e as datas de publicação. Os
títulos já são, por si, sugestivos:
Os caminhos da
liberdade: trilogia de romances publicada entre 1943 e 1949, de que
constam A idade da razão, O sursis e Com a morte na alma.
Mortos sem
sepultura e A prostituta respeitosa, 1946
As mãos
sujas, 1948
O diabo e o bom
Deus, 1951
A questão
do método, 1956
Crítica
da razão dialética, 1969
Os
seqüestradores de Altona, 1969
Sartre em cuba,
1961
Situações
V - o colonialismo e o neocolonialismo, 1964
Situações
VI e VII - os problemas do marxismo, 1964
Existencialismo
e Marxismo, 1957
O idiota da
família (1, 2,3), 1971 e 1972
É proibido
proibir
Para mim, contudo, a
mais importante das obras de Sartre foi seu gesto nas ruas de Paris,
naquelas "barricadas do desejo". O grito de guerra dos
estudantes era "É proibido proibir".
Eu lia com admiração
os jornais de 1968, estampando a figura de Sartre caminhando à
frente de passeatas, formando uma corrente com os estudantes,
enfrentando a policia. Simbolicamente, ele enfrentava a violência
policial e militar de todo o mundo.
De onde lhe nasceu
essa capacidade de busca contínua de um destino renovado, para
si e para a humanidade? Nunca dando respostas prontas, sempre sem
fronteiras, sempre se projetando além de seus livros, de seus
quartos de hotéis e de seus cafés, situados na boêmia
Rive Gauche, o lado esquerdo do rio Sena.
Segundo o mesmo
Sartre, essa busca contínua nasceu de sua falta de superego (a
dimensão do psiquismo que rege os deveres, a idéia de
bem e mal, enfim a moralidade. A formação do superego
na criança, em nossa sociedade, é atribuída à
influência da figura paterna).
É, esta forma
que, com seu humor característico, o filósofo
interpreta a morte de seu pai, ocorrida quando ele tinha dois anos:
Foi
um mal? um bem? Não sei, mas subscrevo de bom grado o
veredito (a meu respeito) de eminente psicanalista: não tenho
superego. (Os pensadores. São Paulo, Abril, 1973,
fascículo 68, p. 887)
Além desse
fato na sua vida individual, Sartre viveu, dos 14 aos 40 anos, nada
menos do que as duas guerras mundiais. Não seria de estranhar
que dessas circunstâncias resultasse um intelectual inquieto e
desenraizado que buscou, sem conseguir ir ao fim, as causas profundas
daquela cultura. A tarefa era por demais ampla para um só
homem. Além do mais, sua saúde fraca foi mais
debilitada ainda pelo excesso de bebida e fumo. A perda quase total
da visão, nos últimos anos, fez de sua companheira,
Simone de Beauvoir, uma semi-escritora de suas obras. Foi Simone
também que, mais tarde, leu diariamente os jornais para ele.
Ela se constituiu numa espécie de olhos de seu mundo.
Mas a inquietação
não parou por aí. Já em idade madura, Sartre
quase foi preso por vender nas ruas de Paris jornais considerados
subversivos, que defendiam uma revolução cultural, como
a que era implantada na China por Mao-Tsé-Tung.
Fora com o Prêmio
Nobel!
No auge de sua
carreira, artista, literato e político de prestígio
negou-se a receber o Prêmio Nobel de Literatura, que lhe foi
atribuído em 1964. Receber essa honraria, para Sartre,
significaria reconhecer a autoridade da Academia Real da Suécia,
comissão julgadora do prêmio. E para onde iria sua
liberdade, sua autonomia de criação?
A destruição
produzida pela guerra impulsionou-o a "novos possíveis",
a serem construídos sobre a paixão pela liberdade.
É assim que,
por detrás de muitas das conquistas libertárias do
homem ocidental de hoje, encontra-se o aval de Sartre. Mas não
se deve esquecer, nessa movimentação, a participação
de Simone de Beauvoir, sua companheira, e de inúmeros outros
existencialistas.
E foi em meio a um
turbilhão de novos valores e propostas que ele dizia com
tranqüilidade:
Não cesso
de me criar, sou doador e a doação. Se meu pai vivesse,
eu conheceria meus direitos e meus deveres: ele está morto e
eu os ignoro. Não tenho direitos, pois o amor me cumula; não
tenho dever pois dou por amor?
Sem nenhum
formalismo, Jean-Paul e Simone viveram juntos até a morte do
filósofo, em maio de 1980. Nada de certidões ou
contratos durante esses 56 anos de convivência: o único
laço que os uniu foi a liberdade que se renovava a cada dia.
Isto não quer dizer que ele não tivesse tido uma vida
cercada de presenças femininas pelas quais nutria grande afeto
e até relações íntimas.
Tão forte
quanto seu amor pelas mulheres e pela vida, foi sua esperança,
mesmo no bojo deste nosso planeta, cada dia mais miserável.
Dois meses antes de sua morte, em sua última entrevista,
Sartre disse que
o mundo parece
feio, mau e sem esperança. Esse é o desespero tranqüilo
de um velho que vai morrer ali dentro. Mas justamente eu resisto e eu
sei que vou morrer na esperança. Mas esta esperança, é
preciso construí-la.
(O testamento de
Sartre. Porto Alegre, L& PM Editores, 1986, p.76)
Vamos Refletir
A seguir são
apresentados estímulos para sua reflexão individual.
Anote suas idéias. Em seguida, troque as anotações
com seus colegas. Ao final do debate, a classe toda pode fazer uma
síntese única:
"Uma coisa
é viver, outra é pensar." (Comente.)
Dê
exemplos do valor da imaginação e da importância
da razão para solucionar os problemas da existência.
Debata as
citações dos textos de Sartre apresentados ao longo
deste capítulo.
Debata o poema
Tabacaria (anexo), de Fernando Pessoa
Propostas de
Atividade
Pesquisar material
disponível (jornais, livros, filmes, músicas) sobre os
movimentos estudantis de 1968 em várias partes do mundo.
Relacionar toda
essa ebulição com a filosofia de Sartre
3. Interpretar a
música "É proibido proibir", de Caetano
Veloso (anexa) a partir da temática deste capítulo.
Anexos
Tabacaria -
Fernando Pessoa
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso
querer ser nada.
À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu
quarto,
Do meu quarto de um
dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem
é, o que saberiam?),
Dais para o mistério
de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para urna rua
inacessível a todos os pensamentos,
Real,
impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério
das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr
unidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a
conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido,
como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido,
como se estivesse para morrer.
.............................................................
Estou hoje perplexo,
como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido
entre a lealdade que devo
À tabacaria
do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação
de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz
propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que
me deram,
Desci dela pela
janela das traseiras da casa.
Fui até ao
campo com grandes propósitos.
Mas lá
encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente
era igual à outra.
Saio da janela,
sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que
sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso ser tanta coisa!
........................................................
(Fernando
Pessoa. Obra poética, Rio de Janeiro, Cia. José
Aguilar Editora, 1969, p. 362-3)
2. É
proibido proibir - Caetano Veloso
A mãe da
virgem diz que não
E o anúncio
da televisão
E estava escrito no
portão
E o maestro ergueu o
dedo
E além da
porta há o porteiro
eu digo não
eu digo não
ao não
eu digo é
proibido proibir
dê um beijo
meu amor
Eles estão
nos esperando
Os automóveis
ardem em chamas
Derrubar as
prateleiras
As estantes
As estátuas
As vidraças
Louças,
livros, sim
E eu digo sim
E eu digo não
ao não
E eu digo é
proibido proibir
Capítulo 3
- O que Sartre andou pensando?
(Do Livro "É
proibido Proibir - Sartre", Fernando José de Almeida,
FTD, 1988, pág. 29-54)
Reflexão
antes de começar a leitura
I. Veja apenas os
subtítulos existentes neste capítulo ("Será
que eu existo?" etc.). Reflita sobre o significado que alguns
deles podem ter para você. Escreva um texto de umas 15 linhas
sobre o que os subtítulos lhe sugerem. Troque seu texto com o
dos colegas, debata e produza uma síntese do grupo. Guarde-a.
Esta atividade
funciona como uma "concentração" para iniciar
a leitura e pode ser aplicada aos outros capítulos deste livro
e de leituras semelhantes.
2. Depois
que você estudar todo este capítulo, verifique a
evolução ocorrida, retomando o texto que você
havia produzido. A compreensão desta unidade pode ser
trabalhada assim
a) ou você
a lê e vai anotando numa folha as idéias principais e as
que lhe são novas, para apresentá-las à classe e
confrontá-las com as de seus colegas;
b) ou você
faz uma leitura junto com a classe, acompanhando-a de comentários.
Em ambos os
casos, você poderá ir formando um vocabulário com
os termos filosóficos mais específicos. O professor
poderá comentar os conceitos que você anotou e ir
tirando as dúvidas.
Será que
eu existo?
Sou um
latino-americano entre 5 bilhões de habitantes de nosso
ameaçado planeta - imenso paiol atômico. Sou
classificado pelo número de minha Carteira de Identidade,
filho de pais que eu não escolhi. Par os políticos ou
um reles voto anônimo.
Serei eu apenas uma
estatística que assiste à TV, consome e respira ?
Serei, como dizia Roquentin, aquele personagem de Sartre, "um
existente que nasce sem motivo, dura por fraqueza e morre por acaso"?
Afinal quem sou eu? Quem é o ser humano?
Sei apenas que me
recuso a ser olhado como mero objeto de estatísticas. Existo
cheio de desejos, de medos, de sentimentos, de sonhos.
Pode ocorrer, no
meio de uma festa, vendo tantas pessoas falando, bebendo, dançando,
de eu me perceber mais só do que nunca. E pergunto: Quem sou
eu? Será que eu existo? Os outros existem? olho minhas
espinhas ou minhas rugas a consciência de que eu existo às
vezes me assalta.
Diante da perda de
um amigo num acidente estúpido, ou diante da notícia de
jovens que se suicidam, sou empurrado Para encontrar-me comigo mesmo.
Estou aqui neste
mundo. Eu existo.
Mas o que é
existir?
É mais que
o simples ser.
As pedras são,
as flores são, as nuvens são. Elas têm ser.
Mas elas não
sabem disso.
Não se
aborrecem, não se alegra, não criticam o chefe,
Não têm
dor-de-cotovelo.
Só o homem
existe. Quer dizer: existir é ter consciência do próprio
ser. Mas tomar consciência da própria existência é
coisa rara. Em geral tenho espaço para consumir, tenho tempo
para gostar daquilo que todos gostam...
O espanto de
existir
Aqueles que
descobrem o próprio existir são tomados de uma sensação
de enorme e espantosa aventura. "Eu existo!", admiram-se.
Mas como entro nesta aventura filosófica? Os gregos diziam que
ela começa a partir da admiração e do espanto.
O existencialismo
também partiu desse espanto e admiração para
perceber e mergulhar na aventura do existir.
É bom
explicar o que é "existir" num sentido filosófico.
O existir tem sua
origem etimológica na palavra latina "ex-sistere",
que quer dizer "estar em pé, fora de".
Isto é, poder
observar o próprio ser como se estivesse fora dele.
Assim, pode-se dizer
que só o homem existe, porque somente ele é capaz de
distanciar-se de si mesmo e de seus atos para examiná-los,
criticá-los ou valorizá-los.
É por isto
que apenas os homens batem recordes. Os animais não superam
suas marcas. Exatamente porque o atleta - que aqui comparamos ao ser
humano - não se contenta com o que consegue é que ele
sempre quer ir além do que já alcançou.
Quando ligamos a TV,
quase sempre ouvimos que um recorde foi batido e vemos a alegria do
atleta quando recebe o resultado. É a humanidade que existe
nele que se supera a cada êxito. Esta é a posição
do existir: sou assim, mas posso ser mais, ou de um outro jeito.
Mas meu questionar
sobre mim e minha consciência não pára por aí.
Vou mais longe.
O meu próprio
ser: por que existe?
Por que, entre
milhões de possibilidades de arranjos genéticos que
fariam nascer irmãs ou irmãos meus, logo eu fui ser o
escolhido ao fim dessa longa cadeia de acasos?
Que força, ou
que jogo de azar, levou aquele espermatozóide - um entre
milhões - a chegar milésimos de segundos na frente?
A mais ínfima
diferença na série em que sou o ponto final: em vez de
mim, ávido de ser eu, haveria apenas outro. Quanto a mim,
seria apenas o nada, como se eu estivesse morto. (Foulquié,
Pierre. O existencialismo. São Paulo, Difel, 1961, p. 42)
Cenas de violência
que presencio na rua, a perda de companheiros queridos ou a traição
de um amigo me empurram a pensar no meu existir. Por quê?
Quando me pergunto
sobre meu existir, tomo consciência dele. É uma situação
parecida com a daqueles momentos em que estou sozinho dentro de um
elevador e me deparo com um enorme espelho. Ajeito meu cabelo, aprumo
meus ombros... Eu ali, comigo mesmo, tendo de me olhar..
Mais
ou menos raros, ocorrem em minha vida momentos fortes - doces ou
violentos - doces ou violentos - em que tenho de me olhar de
"corpo inteiro". Busco o sentido de tudo.
Penso em mim, nos
meus projetos, no mundo que vai me fazendo, neste meu corpo que sou
eu.
Pensar
é importante. Mas não basta. O pensar não faz
o existir. Os textos de Sartre trouxeram-me à memória
algumas de minhas idéias de criança.
Morria de modo de
que as coisas desaparecessem: acreditava que isto aconteceria se eu
não pensasse mais nelas. Sumiria tudo do meu mundo: meus
pais, minha cidade de Friburgo, minha escola, meu Fluminense.
Não é
esta a visão existencialista. Meu pensar não dá
o ser às coisas, mas as faz existirem com características
boas, más, agradáveis ou inúteis. Eu as
transformo em objetos para serem conhecidas, ou para serem motivo de
agressão ou de construção. Misturando-me à
realidade, eu mesmo passo a me reconhecer como útil,
agradável, triste ou falso.
Essência ou
existência. O que é isto?
Aristóteles,
filósofo grego que viveu no século 4 a . C., ensinou
que a essência é aquilo que define ou fornece as
características fundamentais de um ser. Dito de outro modo,
essência é o que faz com que uma coisa seja o que é
e não outra coisa qualquer.
Da essência
não fazem parte qualidades acidentais. Por exemplo: o fato de
a caneta ser azul ou verde, pequena ou grande, cara ou barata não
diz respeito á sua essência.
O fato de ser um
instrumento usado para escrever, ser à tinta e de formato
adaptável à mão humana é que dita a
essência da caneta.
Vamos ver como isto
acontece ao ser humano, segundo a corrente aristotélica e
segundo o existencialismo.
Para muitos
pensadores aristotélicos, o homem tem uma essência -
animal racional - que pertence a toda a humanidade e pode ou não
ter existência individual.
Já os
existencialistas afirmam que a essência humana não
existe nas idéias nem é dada gratuitamente ao homem. A
essência humana é construída por cada um de nós
no próprio existir.
Quando penso em
minha vida, vejo que há mil direções para se
seguir. À medida que vou existindo, decido-me por um caminho.
Ando nele. Com meu caminhar, abro a trilha. Sou como o trator, que
faz seu caminho enquanto avança, mais do que o automóvel,
que só corre por estradas que foram feitas por outros.
O homem é um
ser apenas possível. Existo à media que transformo esse
possível em real. Esta passagem do possível para o real
é a vida. E mais que a passagem, é o modo como o faço.
"- Que
profissão seguir nesta sociedade tão complicada?"
Meus pais me
pressionam para profissões rentáveis e que dêem
nome e status. Vibro com arte, música. Acho que tenho
compromissos para fazer desta sociedade, louca e injusta, algo mais
humano. Mas isto não dá dinheiro nem aprovação
dentro da "boa sociedade". Como sobreviver dignamente e ser
coerente com o que eu sinto e penso?
Os
alunos da escola em que eu trabalho sempre trazem questões
desse tipo. Provavelmente elas apareceram também
para você.
|
Depois de muita
conversa, alguns estudos e bastante reflexão ,a gente tem
chegado á seguinte conclusão: mais importante do que a
profissão escolhida é amaneira como cada um de nós
escolhe vivê-la.
Essa maneira aparece
seja no empenho com que nos preparamos para exercer essa profissão,
seja na dimensão de arte e beleza ou no conteúdo
político que pretendemos dar a ela.
O mundo da justiça
ou da verdade, da liberdade ou da democracia, quem vai construir
nesta profissão é cada um de nós. Temos o poder
de escolher livremente nosso modo de ser profissional. Disto não
podemos abrir mão!
O que vimos que
ocorre na escolha de um projeto profissional, segundo Sartre, também
se aplica à destinação de um significado para a
vida toda.
Mas este existir,
escolhido e criado - ou a passagem do possível à
realidade -, é feito usando-se a liberdade. Está nas
mãos de cada um. É seu privilégio.
Isto não quer
dizer que todos tenhamos uma existência autêntica só
pelo fato de sermos homens.
Ser autêntico
é sempre buscar a identidade entre nossos valores e nossa
atividade: é fazer aquilo em que acreditamos.
É no processo
livre de escolha, a cada dia, de nossa essência que construímos
a existência humana. Escolhemos a nossa essência o
procedermos á escolha do personagem que pretendemos ser.
Essa escolha serve
para nós, mas serve sobretudo para a humanidade toda. Deixamos
nossa marca na história de toda a humanidade mesmo quadro
fazemos um ato bem no fundo da nossa morada interior.
Escolho por todo
o mundo
Os existencialistas
forma particularmente sensíveis à questão da
angústia humana. Seus romances batem e rebatem nesse tema.
Eles destacam que
ficamos cada dia mais angustiados quando aceitamos o fato de que
pertence a cada um a liberdade de construir, pedra a pedra, a
essência do próprio edifício. Toda a
responsabilidade será minha pelo êxito ou pelo fracasso
desta minha cosntrução. Exclusivamente minha.
Aí está
a angústia que sentimos por nossas vidas, tantas vezes
absurdas e marcadas para a morte.
As experiências
vividas por Sartre durante as duas guerras mundiais, as perdas, as
dores, as destruições, as incertezas, certamente terão
contribuído para a formação da sua filosofia
explicativa
As conseqüências
das guerra, das traições, do colaboracionismo de alguns
franceses com os alemães invasores, da resistência de
mulheres e crianças, das torturas, da vitória, vão
também fazê-lo sentir vivamente a questão da
responsabilidade. Você, eu, cada um de nós contribui
para os problemas da sociedade e para sua solução.
Você já
imaginou se cada um dos proprietários de automóveis de
uma cidade grande como São Paulo ou Rio resolvesse, ao mesmo
tempo, sair de carro? Ninguém sairia. Não há
suficientes metros quadrados de ruas para comportar tantos
automóveis.
Moral da história:
os interesses individuais devem responder ao interesse do conjunto.
Daí que ser responsável é ter de responder ao
conjunto da sociedade pelas próprias ações.
Essa
responsabilidade não advém do fato de termos de
responder a um Deus pelos nossos atos, mas de termos de responder
perante a valores que nós mesmos construímos. E
responder a todos os homens:
Se o homem não
é, mas se faz, e se, em se fazendo, assume a responsabilidade
por toda a espécie humana, se não há valor ou
moral dados a priori, mas se, em cada caso, precisamos resolver
sozinhos, sem ponto de apoio e, no entanto, para todos, como
haveríamos de não sentir ansiedade quando temos de
agir? (Sartre, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa,
Presença, s/d, p. 221)
Tal responsabilidade
está apoiada na própria escolha que o homem faz, não
do seu ser, mas da sua maneira de ser. A atitude que cada um assume
em face daquilo que ele é contribui para a própria
transformação.
Essa idéia é
tão poderosa que Sartre afirma que nós temos condições
até de interferir em nosso passado. Os dias que já
vivi não são imutáveis, nem fixos. Posso fazer,
através de minha atitude, com que o passado mude de
significado. Passado feliz ou triste, saudoso ou melancólico,
é meu "projeto" futuro que vai determinar se foi
bem ou mal sucedido.
"Tudo é
bom quando acaba bem", ensina o povo.
O significado de
cada ato meu é dado por uma decisão consciente e livre,
toda minha.
Aqui
Sartre combate duramente Freud (aquele que - dizem explica tudo).
O Pai da Psicanálise coloca no passado uma força tão
poderosa quanto um destino. Segundo ele, nossa história
psicológica anterior determina nosso presente a ponto de não
podermos escapar dele: sobretudo de nossos traumas de origem sexual.
Sartre não concorda com Freud e diz que o ser humano pode
reconstruir o próprio passado e dar-lhe um novo significado.
Se sou estudante
numa certa escola, sou eu que escolho como serei estudante nela.
Poderá ser algo intolerável, humilhante, carregado de
responsabilidade, objeto de orgulho ou justificativa para meus
fracassos. Digo-me então: "Minha vida é infeliz,
ou realizada, por causa de meus pais, ou dos professores bons que não
tive, ou pela frieza de meus amigos, pelo amor que me envolveu...".
Freqüentemente
esqueço que eu mesmo escolhi livremente construir os amores,
esquecer-me dos amigos ou curtir meus pais. Mas o mais saboroso, e
quase fantástico, desta aventura humana é que cada um
vai fazendo sua libertação ao longo deste caminhar. E
não só a sua vida, mas de toda a humanidade, pois, com
sua vida, está construindo sua essência humana:
Queremos
a liberdade pela liberdade através de cada circunstância
em particular E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela
depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade
dos outros depende da nossa (..) (Sartre, J. P. O
existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d,
p. 260)
O homem é um
ser que não pode querer senão a sua liberdade e que
reconhece também que não pode querer senão a
liberdade dos outros.
Daí que
ninguém é livre sozinho...
O outro e minha
identidade
Quem de nós,
quando criança, ou nos momentos de decepção cm
este mundo cheio de loucuras, não desejou ser um náufrago,
na solidão de uma ilha do Pacífico, tal como Robinson
Crusoé?
O escritor Michel
Tournier dá sua versão da vida solitária de
Robinson sob a ótica existencialista. Coisa bonita! O
pensamento sartriano sobre o Outro aparece muito claro num trecho do
livro. Que "outro" é este? É aquele que se
depara à minha frente, diferente de mim.
Lá
pelas tantas, depois de viver muitos anos na ilha, Robinson esquece o
que são os corpos dos outros seres humanos. Corpo da
mulher, em especial.
Percebe, então,
que estava perdendo a própria identidade. Esquecia-se de quem
era. Sente nesse momento o desejo de ter relações
íntimas com um outro diferente de si, no qual possa mergulhar
e cujo interior possa conhecer. No outro, poderia se olhar e
conhecer. Enfim, recuperar soa identidade.
O grande Outro, para
Robinson, é aquela ilha, é a terra. Terra que veste o
homem, que bebe seu sangue, come sua carne, mas que também o
alimenta.
Robinson descobre a
terra. Dorme com ela, amando-a sexualmente.
Dessa relação
com a terra, desse abraço com as árvores, nasce uma
flor até então inexistente na ilha. Ao vê-la,
Robinson tira-a cuidadosamente da terra e vê, com espanto, que
suas raízes têm forma de corpos humanos. Forma do seu
corpo. Reconhece-se nas raízes. Essa flor o ajuda a entender
quem é ele e o que é a ilha.
É apenas o
outro que permite o conhecimento de mim e o sentido de minha
Existência.
Lutando
desesperadamente para encontrar sua identidade, Robinson - não
convivendo com seres humanos - deve buscar no "outro",
vegetal e telúrico, uma referência mínima, um
espelho para seu eu.
O inferno são
os outros?
Quando vou ao
cinema, vejo filas, esbarro em pessoas que compram balas, que
disputam lugares ou que riem na sessão que ainda não
terminou. Todas elas são objetos para mim: filas, quantidades,
multidão anônirna que ri, massa que briga por um lugar.
Só eu me
sinto sujeito. Eu os meço, classifico, analiso.
Eu é que
tenho projetos, tenho consciência. Não sou uma coisa
entre as coisas.
Já sentado,
esperando a próxima sessão de cinema, de repente meu
olhar encontra um olhar que me observa (porque minha meia não
combina com a minha roupa? Ou porque tenho uma mancha na camisa? Ou
porque não sou bonito como o ator daquele fume?). Nesse
momento, como por mágica, esse olhar me transforma num objeto.
Esse olhar me
escapa. Pelo olhar, seu (sua) dono (a) se recusa a tornar-se objeto
do meu olhar. É como um duelo.
Tomo, assim,
consciência, pelo olhar do outro, de que ele é também
consciência. Tal é o cerne da vergonha e do pudor:
sinto-me olhado e considerado um objeto.
Apenas minha
"casca", meu corpo é olhado e não o meu ser
consciente, o meu universo interior.
É por isso
que muitas meninas, mesmo que estejam vestidas dos pés ao alto
do pescoço, se sentem desnudadas por um olhar que as enche de
vergonha. Por outro lado, pode ser que, mesmo usando o biquíni
mais sumário, a jovem se sinta perfeitamente dona de seu corpo
conforme o tipo do olhar que se dirige a ela.
O olhar do outro me
rouba o mundo que era meu e rouba a minha intimidade.
Olhar e amor
Essa "objetivação!"
- o fato de tentar transformar o outro em objeto - que se faz com o
olhar tende a ser uma característica de todas as relações
efetivas.
Quantas vezes você
já sentiu que sua relação mais complicada e
conflituosa acontece exatamente com quem você mais gosta? Mas
por que é complicada essa relação?
Você quer
amar: aí dá presentes, faz poesia, sonha com a outra
pessoa. Só que você vai agindo e pensando de tal forma
que aos poucos ela se toma objeto para você.
Você quer ser
amada: aí vem a sua vez de querer ser acarinhada, receber
atenções, ser objeto de atenções.
Aí o nó
do conflito entre duas pessoas. Ora uma, ora outra tende a ser
transformada em objeto; ao mesmo tempo, nenhuma das duas quer e pode
deixar de ser sujeito.
Você já
deve estar com uma pergunta na ponta da língua: então
não existe o amor?
Quase, diz Sartre.
Para ele, o ato de
amor é uma tênue conquista, que se refaz a cada momento.
De um lado, o amor é
uma história de respeito à liberdade do outro. De
outro lado, é uma busca contínua de fazer respeitar a
própria liberdade.
A relação
entre pessoas que não consideram essas delicadezas leva Sartre
a dizer, pela boca do personagem Garcin:
Vocês
se lembram o enxofre, a fogueira, as grelhas.. do inferno?
Ah! que brincadeira. Não há necessidade de grelhas: o
inferno são os outros! (Foulquié, Pierre. O
existencialismo. São Paulo, Difel, 1961, p. 42)
Contudo essa visão
pessimista não representa o conjunto da obra do filósofo:
foi uma fase.
Sartre percebe que
querer ser amado é tentar assimilar a liberdade de outrem,
sujeitando-a à própria liberdade. Mas, ao mesmo tempo,
ninguém quer ser amado só porque um outro lhe fez um
dia uma promessa: "Amo você porque me comprometi e não
quero voltar atrás na minha palavra".
Do
mesmo modo, ninguém admite ser verdadeira uma relação
semelhante àquela que se teria com aquelas bonecas infláveis
que aparecem no cinema. São usadas e depois vão
para a caixa. Esvaziadas.
|
Todos queremos
também o risco renovado da possibilidade de não ser
amado. Nós somos assim mesmo. Gostamos do risco e da
ambigüidade.
Tendemos a rejeitar
aquele amor que admite ser sempre um objeto passivo para nós.
Por isso ninguém constrói uma relação
saudável com aquele amor que o quer seu escravo. Além
de tudo, ficamos sempre no sobressalto de que esse amor pode também
escapar de nós.
No amor é
inevitável esse conflito entre a tendência de
transformar o outro em objeto e a de se deixar ser objeto. Esse
conflito é saudável, pois mantém o equilíbrio
da relação afetiva.
O tropicalismo
chega à França
Numa entrevista à
TV, Caetano Veloso confessou que tinha dois desejos em sua infância
lá em Santo Amaro da Purificação, interior da
Bahia: o primeiro desejo era ser artista, pintor. O outro era ser
pensador, "como aqueles existencialistas de Paris".
Consciente ou não disso, é que Caetano foi uma das mais
notáveis expressões do tropicalismo, espécie de
existencialismo à brasileira
"Sem lenço,
sem documento,
nada no bolso ou
nas mãos,
eu quero seguir
vivendo, amor! Eu vou!
Por que não?
Por que não?"
(música:
"Alegria, alegria")
Assim como um mágico
que tira tudo - suas ilusões, seus sonhos, sua vida - do vazio
da cartola, também Sartre e os existencialistas partem do nada
que é o homem para construir tudo: a trágica, bela,
derrotada, sutil e absurda existência humana. Cada um de nós
inicia essa aventura sem nenhum documento, sem nenhuma certeza de
onde veio ou onde vai.
O nosso passado é
nada, não temos lenço nem documento. Nosso destino é
desconhecido mas queremos seguir dizendo: "Eu vou! Por que
não""
Damo-nos conta de
que há um nada em nosso interior. Esse nada é o
futuro. O futuro aparece como uma série de ações
possíveis em que um Eu (que ainda não é) deve
decidir com autonomia.
Sartre formula seu
conceito de liberdade mergulhado nesse sentimento de angústia
advindo do "nada"' que é nossa existência.
Torna-se apaixonado pela liberdade e vai fazer dela uma das bases de
seu sistema filosófico. No entanto dá à
liberdade um significado diferente do que habitualmente se dá
à palavra.
Numa primeira e
mais simples visão, uma pessoa é considerada livre à
medida que pode alcançar seus objetivos sem encontrar
obstáculos, ou com um mínimo de esforço. Se
alguém encontra dificuldades, ou lhe falta capacidade, então
não é tida como livre.
No sentido
Político, a liberdade pode significar não encontrar
obstáculos - legais ou policiais - à sua ação
ou expressão.
Há muitos
séculos, uma corrente do pensamento ocidental vem
fundamentado seu conceito de liberdade em Deus.
Ao criar o homem,
Deus faz um plano para a realização dessa criatura.
Esse plano - de bondade, justiça, verdade... - pode ou não
ser cumprido pelo homem. Na realização (ou não)
desse plano está sua "autodeterminação'.
Chama-se liberdade autodeterminação.
Ao criar o homem,
Deus faz um plano para a realização dessa criatura.
Esse plano - de bondade, justiça, verdade... - pode ou não
ser cumprido pelo homem. Na realização (ou não)
desse plano está sua "autodeterminação".
Chama-se liberdade de autodeterminação.
É um outro
modo de vê-la. Somos livres, mas para seguir um plano que nos
foi dado por Deus. Sartre situou a liberdade num outro patamar.
O homem mata Deus
e se condena... a ser livre!
O existencialismo
ateu, defendido por Sartre, partirá de um pressuposto
radicalmente contrário àquele que situa a liberdade
como um espaço de "autodeterminação".
Não há
mais a dependência de um sujeito com relação a um
plano divino. Deus não existe para Sartre. Este é o
seu fundamento:
Com
efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o
homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra
em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de
mais nada, não há desculpas para ele.
(Sartre, J. P. O
existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença, s/d,
p. 226)
Há uma
agravante para a solidão de sua liberdade: é na
realização da própria vida (existência)
concreta, na sua história pessoal, que o homem constrói
suas características, sua essência. É também
nessa mesma história que cada um de nós as remodela,
aperfeiçoa, cria...
Para nosso filósofo,
a pessoa não tem nenhuma natureza humana que a revista de
determinados valores e deva ser realizada. Não nascemos com
uma receita de bolo embutida em nossa personalidade dizendo que
ingredientes a compõem.
|
Sartre diz que, se
Adão existisse, não teria uma natureza já dada,
com essas ou aquelas caraterísticas. Se assim fosse, ele não
teria nenhuma responsabilidade pelo seu ser. Nem mérito:
Para nós,
pelo contrário, Adão não se define por uma
essência, pois a essência é, para a realidade
humana, posterior à existência (...)
Se, com efeito, a
existência precede a essência, não será
nunca possível referir uma explicação a uma
natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não
há determinismo (...)
(Sartre,
J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença,
s/d, p. 214)
Quando se diz que o
homem está sujeito a determinismos, significa que se acredita
que qualquer força, seja econômica, social, ou
biológica, obrigam de tal forma que ele nada pode escolher por
si mesmo e com liberdade.
No fundo, os
defensores do determinismo afirmam que o homem é um
prisioneiro de sua herança genética e um robô das
pressões econômicas, que o levam a escolher a profissão,
o amor, a amizade, o partido, ou uma viagem, sem nenhuma autonomia.
Homens, em suas reações, seriam pouco diferentes de
cobaias de laboratório.
Sartre propôs
e defendeu a soberania da subjetividade humana, que permite ao homem
escolher a cada passo o seu caminho.
O indivíduo é
livre. Ele não apenas tem liberdade, mas é liberdade.
A inexistência
de um Deus que vive a nos indicar caminhos e valores faz com que nada
fora de nós legitime nosso comportamento.
Nós
construímos tudo: até mesmo os nossos valores, regras e
imposições..
Assim,
não temos nem atrás de nós, nem diante de nós,
no domínio luminoso dos valores justificações ou
desculpas (...) o homem está condenado a ser livre. Condenado,
porque não criou a si próprio; e no entanto livre,
porque uma vez lançado ao mundo é responsável
por tudo quanto fizer... (J.-P. Sartre. O Existencialismo é
um humanismo. Lisboa, Presença, s/d, p. 226)
|
Vamos Refletir
1. Comente em
duplas, e depois com a classe toda, a seguinte proposição
de Sartre, levantando situações concretas em que se
aplique:
"A existência
precede a essência"
2. O poema de
Fernando Pessoa (anexo) reproduz muito bem o clima existencialista.
Destaque os versos que explicitam o pensamento de Sartre,
3. No
texto A República do Silêncio (anexo) destaque as
idéias de Sartre sobre os temas:
liberdade;
responsabilidade;
compromisso
indivíduo-sociedade
4. Também
anexos trechos de O existencialismo é um humanismo, de
Sartre. Discuta estes textos, levante suas concordâncias e
discordâncias.
5. Irmãos,
de Luís Fernando Veríssimo (anexo), retrata bem a
questão da gratuidade da nossa existência. Compare o
texto com as idéias de Sartre.
Propostas de
Atividade
I. Faça
entrevista sobre a idéia de liberdade com três pessoas
de grupos sociais e instrução diferentes. Veja com
qual das quatro definições de liberdade apresentadas
neste capítulo o entrevistado mais se identifica.
2. Em grupos, fazer
pesquisa com poesias e músicas contemporâneas que
apresentem e ilustrem as idéias existencialistas. As letras
das músicas, por amplo, de Chico Buarque, Milton Nascimento,
Ivan Lins e as poesias de Drummond,
Fernando Pessoa,
Cecília Meirelles, Adelia Prado, João Cabral, Ferreira
Gullar, entre outros, podem oferecer amplo material.
3. Uma boa idéia
pode ser a apresentação de urna seleção
de dos de músicas.
Anexos
Dizes-me: tu és
mais alguma cousa
pedra ou uma planta.
Dizes-me: sente,
pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as
pedras escrevem versos?
Então as
plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há
diferença.
Mas não é
a diferença que encontras;
Porque o ter
consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga
a ser consciente..
Se sou mais que uma
pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não
sei o que é mais ou menos.
Ter consciência
é mais que ter cor?
Pode ser e pode não
ser.
Sei que é
diferente apenas.
Ninguém pode
provar que é mais que só diferente.
Se que a pedra é
a real, e que a planta
Sei isto porque elas
custem.
Sei isto porque os
meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real
também.
Sei isto porque os
meus sentidos mo mostram.
Embora com menos
clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais
nada.
Sim, escrevo
versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço
idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as
pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são
plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer
que sou superior a elas por isto,
Como que sou
inferior.
Mas não digo
isso: digo da pedra, "é urna pedra"
Digo da planta, "é
uma planta",
Digo de mim, "sou
eu"
E não digo
mais nada. Que mais há a dizer?
Fernando
Pessoa. Obra poética, Rio de Janeiro, Cia. José
Aguilar Editora, 1969, p. 234.
A
República do Silêncio
J.-P.
Sartre
Nunca fomos tão
livres como sob a ocupação alemã. Tínhamos
perdido todos os direitos e, antes de todos os outros, o direito de
falar; insultavam-nos na cara todos os dias e tínhamos de
ficar calados; deportavam-nos em massa, como judeus, como
prisioneiros políticos; em toda a parte, nas paredes, nos
jornais, nos cinemas, reencontrávamos o imundo e desenxabido
rosto que os opressores nos apresentavam de nós mesmos; por
tudo isso, éramos livres.
Dado que o veneno
nazi se infiltrava até no nosso pensamento, cada pensamento
era uma conquista; dado que uma política prepotente procurava
reduzir-nos ao silêncio, cada palavra se tornava preciosa como
uma declaração de princípio dado que éramos
perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso dum compromisso.
As circunstâncias
tantas vezes atrozes do nosso combate punham-nos a viver, sem
fingimento nem véus nem véus, a situação
atormentada, insuportável, a que se chama condição
humana. O exílio, o cativeiro e principalmente a morte, que é
habilmente disfarçada nas épocas felizes, tornavam-se
os objetos perpétuos das nossas preocupações,
aprendíamos que não são acidentes inevitáveis,
nem mesmo ameaças constantes, mas exteriores: era preciso ver
nisso o nosso quinhão, o nosso destino, a origem profunda da
nossa realidade de homens; em cada segundo vivíamos plenamente
o sentido da pequenina frase banal: "todos os homens são
mortais".
E a escolha, que
cada um de nós fazia de si próprio, era autêntica,
pois era em presença da morte, pois teria sempre podido
exprimir-se sob a forma "Antes a morte do que...." E não
me refiro aqui a essa elite que foram os verdadeiros resistentes mas
a todos os franceses que, em todas as horas do dia e da noite,
durante quatro anos, disseram não.
A própria
crueldade do inimigo levava-nos até extremos da nossa
condição, obrigando-nos a fazer a nós próprios
perguntas que são iludidas em tempos de paz: aqueles de nós
- e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso?
- que conheciam alguns pormenores relativos à Resistência
interrogavam-se angustiosamente: "Se me torturarem,
agüentarei?".
Assim se punha o
próprio problema da liberdade e estávamos à
beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si
próprio.
Porque o segredo dum
homem não é o seu complexo de Édipo ou de
inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, é
o poder da resistência aos suplícios e à morte.
Aos que tiveram uma
atividade clandestina, as circunstâncias da luta traziam uma
experiência nova: não combatiam à luz do dia,
como soldados; perseguidos na solidão, prisioneiros na
solidão, era no abandono, na miséria mais completa, que
resistiam às torturas: sós e nus diante de carrascos
bem barbeados, bem alimentados, bem vestidos, que troçavam da
carne miserável e a quem uma consciência satisfeita e um
poderio social desmesurado davam todas as aparências de ter
razão. Contudo, no mais profundo dessa solidão, eram os
outros, todos os outros, todos os camaradas de que defendiam; uma só
palavra era bastante Para causar dez, cem prisões. Essa
responsabilidade total na solidão total não será
o próprio desvendamento da nossa liberdade?
Esse abandono, essa
solidão e esse risco enorme eram os mesmos para todos, para os
chefes e para os homens; para os que levavam mensagens de que
desconheciam o conteúdo como para os que comandavam toda a
Resistência, a mesma sanção: a prisão, a
deportação, a morte.
Não há
exército no mundo em que se encontre tal igualdade de riscos
para o soldado e o generalíssimo.
E é por isso
que a resistência foi uma verdadeira democracia: tanto para o
soldado como para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade,
a mesma absoluta liberdade na disciplina.
Assim, na sombra e
no sangue, constituiu-se a mais forte das repúblicas.
Cada cidadão
sabia que tinha obrigações para com todos e que não
podia contar senão consigo próprio; ao abandono mais
total, cada um deles estava ciente do seu papel histórico.
Cada um deles,
contra os opressores, se propunha ser ele próprio,
irremediavelmente, e, ao escolher-se a si próprio na sua
liberdade, escolhia a liberdade de todos.
Essa República
sem instituições, sem exército, sem política,
era preciso que cada francês a conquistasse e a afirmasse em
todos os instantes contra o nazismo.
Estamos agora à
beira duma outra República: deseja-se que conserve á
luz do dia as austeras virtudes da República do Silêncio
e da Noite.
Situações
III. Braga, Publicações Europa-América, 1971, p.
11-14
3. O
existencialismo é um humanismo (trechos)
J.-P. Sartre
O
existencialista, pelo contrário, pensa que é muito
incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele
toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível;
não pode existir já o bem a priori, visto não
haver já uma consciência infinita e perfeita para
pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o
bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos
mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há
somente homens. Dostoiévski escreveu: "Se Deus não
existisse, tudo seria permitido". Aí se situa o ponto de
partida do existencialismo.
Com efeito, tudo é
permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte,
abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si,
uma possibilidade a que se apegue.
Antes de mais nada,
não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência
precede a essência, não será nunca possível
referir uma explicação a uma natureza humana dada e
imutável; por outras palavras, não há
determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
Se, por outro lado,
Deus não existe, não encontramos diante de nós
valores ou imposições que nos legitimem o
comportamento. Assim não temos nem atrás de nós,
nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores,
justificações ou desculpas. Estamos sós e sem
desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está
condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si
próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao
mundo é responsável por tudo quanto fizer. (...)
O existencialista
não pensará também que o homem pode encontrar
auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de
orientar; Porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como
lhe aprouver. Pensa portanto que o homem, sem qualquer apoio e sem
qualquer auxílio, está condenado a cada instante a
inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: "O homem é
o futuro do homem".
É
perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro
está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é
um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se
entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem
que o espera, então essa frase está certa. Mas em tal
caso o homem está desamparado.
O quietismo é
a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo eu não
posso fazer. A doutrina que vos apresento é justamente a
oposta ao quietismo visto que ela declara: só há
realidade na ação; e vai aliás mais longe, visto
que acrescenta: o homem não é senão o seu
projeto, só existe na medida em que se é portanto nada
mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.
De acordo com isto
podemos compreender por que a nossa doutrina causa horror a um certo
número de pessoas. Porque muitas vezes não têm
senão uma única de suportar a sua miséria, isto
é, pensar "as circunstâncias foram contra mim, eu
muito mais do que aquilo que fui; é certo que não tive
um grande amor, ou uma grande amizade, mas foi porque não
encontrei um homem ou uma mulher que fossem dignos disso, não
escrevi livros muito bons, mas foi porque não tive tempo livre
para o fazer; não tive filhos a quem me dedicasse, mas foi
porque não encontrei o homem com quem pudesse realizar a minha
vida. Permaneceram, portanto, em mim e inteiramente viáveis,
inúmeras disposições, inclinações,
possibilidades que me dão um valor que da simples série
dos meus atos se não pode deduzir".
Ora, na realidade,
para o existencialista não há amor diferente daquele
que se constrói; não há possibilidade de amor
senão a que se manifesta no amor, não há gênio
senão o que se exprime nas obras de arte; o gênio de
Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de
Racine é a série das suas tragédias, e fora
disso não há nada; por que atribuir a Racine a
possibilidade de escrever uma nova tragédia, já que
precisamente ele a não escreveu? Um homem embrenha-se na sua
vida, desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não
há nada.
Que significa aqui o
fato de a existência preceder a essência? Significa que o
homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só
depois se define.
O homem, tal como o
concebe o existencialista, se não é definível, é
porque primeiramente não é nada. Só depois será
alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não
há natureza, visto que não há Deus para a
conceber.
O homem é,
não só como ele se concebe, mas como ele quer ser; como
ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após
este impulso para a existência, o homem não é
mais do que o que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro
princípio do existencialismo.
É também
a isto que chamamos subjetividade e pelo que somos censurados sob o
mesmo nome. Mas que queremos dizer com isso, senão que o homem
tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Pois o que nós
queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o
homem, antes de mais nada, se lança para um futuro, e que é
consciente de se projetar no futuro.
O homem é,
antes de mais nada, um projeto vivido subjetivamente, ao invés
de ser um creme, qualquer coisa podre, ou uma couve-flor; nada existe
anteriormente a este projeto; nada há no céu
inteligível, e o homem será antes de tudo o que ele
houver projetado ser. Não o que ele quiser ser. Pois o que
vulgarmente entendemos por querer é uma decisão
consciente que, para a maior parte de nós, é posterior
ao que alguém fez de si mesmo. Posso querer aderir a um
partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é
mais do que a manifestação duma escolha mais original,
mais espontânea daquilo que se chama vontade.
Mas se
verdadeiramente a existência precede a essência, o homem
é responsável por aquilo que é. Assim, o
primeiro esforço do existencialismo é o de pôr
todo homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a
responsabilidade total por sua existência. E, quando dizemos
que o homem é responsável por si próprio, não
queremos dizer que o homem é responsável por sua
estrita individualidade, mas que é responsável por
todos os homens. Há dois sentidos para a palavra
subjetivismo, e é com isso que jogam nossos adversários.
Subjetivismo quer dizer, de um lado, escolha do sujeito individual
por si próprio; e, por outro, impossibilidade do homem em
superar a subjetividade humana. O segundo é que é o
sentido profundo do existencialismo.
Quando dizemos que o
homem se escolhe, queremos dizer que cada um de nós se
escolhe; mas, com isso, também queremos dizer que, ao se
escolher, ele escolhe todos os homens.
Com efeito, não
existe um ato nosso que, ao criar o homem que desejamos ser, não
crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser.
Escolher ser isto ou
aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos,
pois nunca podemos escolher o mal; o que escolhemos é sempre o
bem e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.
Se a existência,
por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao
mesmo tempo em que construímos a nossa imagem, esta imagem é
válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a
nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos
supor, porque ela envolve a humanidade.
O existencialismo
é um Humanismo. Lisboa, Presença, s/d/, p. 241
4. Irmãos
Luís
Fernando Veríssimo
- De vez em quando
eu penso neles,
- Quem?
- Nos
espermatozóides...
- De vez em quando
você pensa nos seus espermatozóides?
- Nos meus não.
Nos do meu pai.
- Você está
bêbado.
- Na noite em que eu
fui concebido - suponho que tenha sido um noite - eu era um entre
milhões de espermatozóides, Mas só eu cheguei ao
óvulo de mamãe. Ou será bilhões?
- Acho que é
óvulo mesmo.
- Não. Os
espermatozóides. É milhões ou bilhões?
- Ahn... Não
sei.
- Não
importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei,
entende? Por acaso. Isto é mais assombroso. A gratuidade da
coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóide
junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo.
Não é assombroso?
- É.
- Você acha
mesmo?
- Acho.
- Podia ser qualquer
um, mas fui eu. Por acaso.
- Amendoim?
- Hein? Obrigado.
Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu
fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui,
neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isto?
- É como você
diz. A gratuidade da coisa. Não, não. Isto que eu
estou bebendo. É, ahn, uísque.
- Uísque.
Pois então. Aí está.
- Ó Moacir,
vê outro aqui. O rapaz está precisando.
- Um brinde!
- Um brinde.
- A eles!
- Quem?
- Aos
espermatozóides que não chegaram ao óvulo de
mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão
e não viveram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos
meus irmãos!
- Aos meus irmãos!
- Meus irmãos.
Você não estava lá.
- Aos seus irmãos!
- Aos milhões,
bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
- Salve.
- Agora me diga uma
coisa.
- Duas. Digo duas.
- Cada
espermatozóide é uma pessoa diferente, certo? Quer
dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide tivesse
completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
- Depende.
- Não seria.
Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até
torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher.
Certo?
- Não vamos
exagerar..
- E outra coisa. O
que passou, passou. Não pense mais nisso.
- Mas eu penso. De
vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não
nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury,
Jessica...
- Marco Antônio...
- Marco Antônio...
Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em
74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
- Bom, eu tenho 11
irmãos.
- Aí é
diferente.
- Por quê?
-
Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões
de espermatozóides, todos com os mesmos direitos, só eu
me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
- É uísque.
- Não. É
a gratuidade da coisa.
- Não sei...
- Você está
bêbado.
O
analista de Porto Alegre. L&PM Editores, 1981, p. 19-22
CAPÍTULO 4
- EXISTENCIALISMO X MARXISMO
(Do livro: "É
proibido proibir - Sartre", Fernando José de Almeida,
FTD, São Paulo, 1988, p. 55-65)
"A vida não
começa com o primeiro salário”
Meu amigo Moumen, um
argelino carismático e de barba negra que trabalha com
exilados em Lyon não entendia por que a maioria dos franceses
tanto teme os argelinos e o desemprego que causam. Dizia não
saber também por que, quando faltava mão-de-obra
desqualificada, seus compatriotas eram tão bem-vindos. Ironia
pura. Ele bem sabia que era o colonialismo que tinha feito aquilo e
continuava a fazer estragos, espalhando preconceitos e segregação.
Sartre foi dos
primeiros franceses, lá em 1936, a combater violentamente, na
própria França, o colonialismo francês.
Ele, que tanto
combatera os invasores alemães no seu país, denunciou
incansavelmente a ocupação que os franceses fizeram do
Vietnã, da Indochina e da Argélia. Sartre esteve entre
os primeiros a exigir a imediata independência dos povos dessas
terras. Sua denúncia durou quase 20 anos (1945-1963),
apontando o número de exilados, o racismo, os milhões
de mortos, as torturas "praticas em nosso nome".
Na
Argélia a exploração colonial é metódica
e rigorosa; expulsos de suas terras, empurrados para os solos
improdutivos, são obrigados a trabalhar em troca de salários
irrisórios, o temor do desemprego desencoraja neles a
revolta... (COLOMBEL, Jeannette. Sartre. Paris, Le Livre de Poche,
1985, p. 163, tomo 1)
Embora tenha
terminado oficialmente, o colonialismo continua sendo um ciclo forte
e infernal.
Sartre denunciava
que dois terços da humanidade passavam fome, ou seja, não
comiam senão micróbios, e que estes mesmos micróbios
seriam mais tarde seus carrascos. Situação
inaceitável. Nos quarteirões pobres e nas terras pobres
do planeta, as crianças morrem por falta de higiene Ou por má
distribuição da renda; isto é um absurdo e não
se pode apontar um Deus surdo e cego como causa desses males, mas
deve-se, diz Sartre, acusar os homens e as condições
sociais.
Suas posições
de filósofo-político o levaram também a ter uma
espécie de compromisso e paixão pela classe operária.
Escreveu sempre pensando nela. Escolheu-a como destinatária
de seus romances e peças de teatro. O importante era
denunciar os abusos, a podridão, a crise, da classe burguesa,
causando-lhe irritação e inquietude. Ele define seu
alinhamento ao lado dos operários dizendo que "não
estamos mais com aqueles que querem possuir o mundo, mas com aqueles
que o querem transformar".
Mas essa paixão
não fazia dele um operário. Continuava um burguês
nascido em Paris, que freqüentou os melhores colégios,
comendo, bebendo em bares sofisticados e vivendo como um burguês.
A única saída
que encontrou para ser coerente foi a dedicação à
causa operaria através de seu compromisso como escritor. Sua
literatura vai ser vista como forma de elevar-se acima das classes,
fora da história, para denunciar assim as injustiças
sociais e poder criticar até as organizações
político-sociais dos próprios operários.
Funcionário da humanidade, o empenho intelectual de Sartre vai
poder ser uma atividade pedagógica superando a própria
política de grupos. Assim ele fala da sua função
como escritor:
Demiurgo
destituído de interesses práticos imediatos, o escritor
deve dirigir-se à comunidade inteira, deve revelar ao público
as suas próprias necessidades, deve educar e congregar em
conjunto burgueses de boa vontade, intelectuais, operários não
comunistas. (SARTRE, J.-P. "Quest-ce que la
litterature?", in Situations II, pp. 257 e 292)
Violência
como libertação
A conclamação
feita por Sartre aos oprimidos não se restringia a uma
denúncia teórica ou poética. Às vezes ela
se revestia com a marca da violência. Falando da libertação
da Argélia, ele defendeu empenhadamente a luta armada... dos
argelinos! A luta elevava a milhões os mortos do lado
argelino e a dezenas de milhares os franceses, o que o obrigou a
defender o valor da violência, se ela é libertadora:
As
marcas da violência, nenhuma doçura as apagará:
é apenas a violência que pode destruí- las. E o
colonizado se cura da neurose colonialista caçando o
colonizador pelas armas. Quando um camponês toma um fuzil, os
velhos mitos empalidecem, as proibições uma a uma se
transformam: a arma de um combatente é sua humanidade. Porque
neste primeiro momento da revolta é preciso matar: abater um
europeu é dar dois golpes com uma s6 pedra, suprimir ao mo
tempo um opressor e un oprimido. Resulta um homem morto e um homem
livre: o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional
sob a planta de seus pés. (COLOMBEL, Jeannete. Sartre.
Paris, Le Livre de Poche, 1985, p. 163, tomo 1)
Como este pensador
tão vibrante se coloca perante o pensamento marxista?
O marxismo, pois,
permanece a filosofa do nosso tempo: é insuperável
porque as circunstâncias que o engendraram não foram
ainda superadas. Nossos pensamentos, quaisquer que sejam, não
podem se formar senão sobre este humo... (Os pensadores. São
Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887)
Ele
revela que leu Marx na universidade aos 20 anos, tendo seu primeiro
contato com os livros O capital e A ideologia alemã:
Eu
compreendia tudo luminosamente e não compreendia absolutamente
nada. Compreender é modificar-se, ir além de si mesmo:
esta leitura não me modificava. Mas o que começava a
me transformar, em contrapartida, era a realidade do marxismo, a
grave presença, em meu horizonte, das massas operárias,
corpo enorme e sombrio que viva o marxismo, que o praticava e que
exercia à distância uma irresistível atração
sobre os intelectuais pequeno-burgueses. (Os pensadores. São
Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887)
A partir daí,
um conhecimento mais maduro da filosofia de Marx levou-o a afirmar
que estava convencido de que o materialismo histórico,
defendido por Marx, "fornecia a única interpretação
válida da história e de que o existencialismo
permanecia a única abordagem concreta da realidade".
Mas Sartre se
desencantou com o marxismo. Não pela sua teoria mas pela
dificuldade de se tomar uma prática política coerente,
devido dificuldade de o marxismo ser traduzido em ação.
Sartre e muitos
existencialistas apoiaram durante os primeiros anos que se sucederam
à 2ª Guerra as posições políticas da
URSS. Puseram nos Partidos Comunistas as grandes esperanças
de transformação da sociedade européia.
A segunda
intervenção soviética na Hungria em 1956 e a
existência de campos de concentração na URSS
desencadearam em Sartre, as primeiras críticas aos modelos
sociais que se apoiaram na teoria marxista. Sua história de
aproximações e afastamentos frente ao Partido Comunista
e ao marxismo foi uma marca de toda sua vida.
Os marxistas
querem distância dele
A primeira rejeição
foi feita pelos próprios marxistas que atribuíram a
Jean-Paul Sartre uma filosofia que expressa a ideologia burguesa
decadente.
Para marxistas, O
existencialismo representava a sociedade burguesa que, privada de
seus privilégios, destronada, sem futuro, sem justificativa,
declara absurdos o mundo e a vida.
Este drama da
náusea, do nada e do absurdo são frescuras daqueles que
"vivem do trabalho alheio. Quem não vive de rendas, quem
acorda de madrugada, luta para educar seus filhos e come de marmita
tempo de sentir tal náusea existencial diziam os críticos
de Sartre.
A grande crítica
dos marxistas ao pensamento sartriano está no seu modo de dar
importância ao ato livre do sujeito; à subjetividade que
o permite agir, passando por cima das determinações do
econômico e do material.
"Para um
marxista a liberdade é uma possibilidade de ação
e eficácia. Tudo tem de se transformar em ação
para a mudança da sociedade.
Portanto o ideal
comum do Partido é mais importante que as idéias
pessoais, talvez meras divagações.
Por outro lado, a
liberdade individual é tão fundamental para o
existencialismo que Sartre chega a dizer que pouco importa fazer isto
ou aquilo, tomar uma bebedeira sozinho ou ser líder de um
povo: o principal é agir com liberdade.
O indivíduo
não pode perder o espaço de sua realização
máxima em nome de nenhuma causa ou bandeira política.
O que fez os
teóricos marxistas terem tanta aversão ao pensamento de
Sartre e de seus seguidores foi a paixão existencialista pela
liberdade individual e sua mística da derrota. Eles curtem o
absurdo, o nada, o vazio.
Se, por um lado, o
culto ao subjetivismo (liberdade individual como alicerce central do
projeto humano) motivou o rompimento do marxismo com o
existencialismo, por outro a consideração contínua
da possibilidade do revés e da derrota tomou definitivo esse
rompimento.
O marxismo precisa
crer na mística do êxito do proletariado e no triunfo
das forças progressistas na história. A náusea,
o absurdo, o nada não levam os partidos, as massas e o
indivíduo a lugar nenhum.
Embora
Sartre exaltasse o marxismo como a máxima teoria explicativa
da história e como a filosofia do nosso tempo, ele apontava
para erros fundamentais, seja no seu modo de ver a questão do
indivíduo, seja na redução do espírito a
matéria, ou ainda pelo fato de ter negado Deus e a metafísica
de um modo superficial e ter apostado apenas na determinação
dos motivos econômicos, eliminando toda a subjetividade.
Seus posicionamentos sobre o marxismo oscilaram entre a simpatia,
a defesa e a aliança, passando em seguida a disputas,
discordâncias ataques. Se marcarmos no calendário o
ciclo dessas alterações veremos que as
brigas/reconciliações variam de 6 em 6 anos! Curiosa
coincidência!
Integrar as
tensões
O
que fica mais claro em todo este debate é a contínua
tentativa de Sartre de integrar os dois sistemas. Ele tentou
interpretar o marxismo segundo a ótica existencial. A
economia política, a luta de classes e as complexas análises
de estruturas de Marx passaram a ser consideradas temas secundários.
Sartre buscou em Marx o tema da filosofia do homem, mas inserindo
novos conceitos como o de "situação" e de
"superação", para que o marxismo
ganhasse estatuto de Filosofia. O que Sartre fez foi recuperar as
categorias que já havia desenvolvido em O ser e o nada,
apenas acrescentando a noção de situação
e superação. Vejamos seu texto:
O
homem define-se com base no seu projeto. Este ser material supera
continuamente a condição que se encontra já
feita, revela e determina sua própria situação,
transcendendo-a para se objetar através do trabalho, da ação
ou do gesto.. Esta relação imediata para além
dos elementos dados e constituídos, com outro que não
nós mesmos, esta perene produção de n6s mesmos
através do trabalho e da práxis é a nossa
estrutura própria: nada mais do que uma vontade, não é
uma necessidade ou uma paixão, mas as nossas necessidades tais
como nossas paixões, ou tal como o mais abstrato
dos nossos pensamentos, participam da mesma estrutura: encontram-se
sempre fora de si em direção a ... É a
isto que nós chamamos existência e que entendemos, de
fato, não como uma substância estável que repouse
sobre si mesma, mas como um permanente desequilibro uma
auto-erradicação de todo o corpo. Como esta tendência
para a objetivação assume formas diversas conforme os
indivíduos, e como nos projeta através de um campo de
possibilidades, das quais realizamos umas mais do que as outras,
designamo-la por escolha ou liberdade. (Os pensadores. São
Paulo, Abril, 1973, fascículo 68, p. 887)
Esta síntese
dos princípios antropológicos de Sartre não
encaminha seu pensar na direção do marxismo. Antes é
uma retomada insistente e talvez disfarçada do
existencialismo.
Vale aqui esclarecer
os dois conceitos de "situação" e "superação"
que são inovações do seu pensamento e
representam mais uma tentativa para aproximá-lo do marxismo.
A
situação limita a vida do indivíduo e nada
mais é que a sociedade e suas normas. O homem freqüentemente
dominado pela rotina nem a percebe, apenas a suporta.
Pelo
caráter de ser situado, posso entender o homem como
alguém que não escolhe seus pais, nem seu tempo, nem
sua altura, nem sua pátria. Porém, pelo seu caráter
de transcendente às circunstâncias concretas da vida,
ele pode superá-las. Pela sua transcendência ou
por sua capacidade de superação, ele pode "ir
além"...
Assim, não
escolhi meus pais (e de certa forma nem eles a mim), mas posso
decidir sobre minha forma de relação com eles: afetiva,
sincera, autoritária, omissa, descartável...
Se
minha pátria é marcada pela corrupção,
pela política da pobreza produzida, ou pelo desencanto, pelo
meu projeto posso executar uma prática de vida individual (e
mesmo social) que aponte Para outra direção. Isto é
a superação, mesmo que eu não a realize
integralmente.
A conclusão
que tiro de tantas lutas, tantos conflitos, tanta participação
e até tanta ambigüidade, é que Jean-Paul Sartre
foi um homem de nossa época, Profundamente conhecedor de
nossos descaminhos e de nossa vontade de buscar o sentido de tudo: a
existência!
Vamos Refletir
1. Em
que pontos Sartre e os marxistas têm suas principais: o
semelhanças? discordâncias?
Comente a frase de
Sartre:
O marxismo
estacionou: precisamente porque esta filosofia quer transformar o
mundo, porque visa tornar-se mundo da filosofia, porque é e
quer ser prática, operou-se nela verdadeira cisão que
jogou a teoria de um lado e a práxis do outro.
3. Anexo, você
tem um exemplo das idéias políticas de Sartre, na
última entrevista que deu antes de morrer. Levante suas
concordâncias e discordâncias com o testo.
4. Em
que situações atuais (política, literatura) está
presente a disputa levada a efeito por Sartre e pelos marxistas?
Propostas de
Atividade
1. Pesquise
uma peça de teatro, um filme, livro ou novela de TV em que
apareçam alguns temas que foram preocupação de
Sartre.
2. Em grupos, montar
atividades-síntese (jornais, teatro, vídeos etc) sobre
o pensamento de Sartre.
Anexo
Nosso planeta é
habitado hoje pelos pobres, de um lado - os extremamente pobres, que
morrem de fome - e uma pequena porção de ricos, do
outro - ricos que começam a se tornar menos ricos, mas que,
ainda assim, ainda vivem muitíssimo bem.
Com essa terceira
guerra mundial que pode estourara qualquer dia desses, comesse
conjunto miserável que é o nosso planeta, o desespero
recomeça a me tentar: a idéia que não acabaremos
jamais com isso, que há finalidade, mas apenas pequenos fins
pelos quais combatemos...
Fazemos pequenas
revoluções, mas não existe um fim humano, não
há algo que interesse ao homem, só há desordem.
Pode-se chegar a
pensar assim.
É uma idéia
que volta a nos tentar incessantemente, sobretudo quando já
estamos velhos podemos pensar: "Pois é, em cinco anos,
no máximo, estarei morto". Na verdade penso dez, mas
poderão ser cinco. Em todo o caso, o mundo parece feio, mau e
sem esperança. Esse seria o desespero de um velho que já
morreu por dentro. Mas eu resisto, e sei que morrerei na esperança,
dentro da esperança - mas essa esperança, teremos de
fundá-la.
É preciso
tentar explicar por que é que o mundo de agora, que é
horrível, não passa de um momento no longo
desenvolvimento histórico, e que a esperança sempre foi
uma das forças dominantes das revoluções e das
insurreições - e como sinto, ainda, a esperança
como minha concepção do futuro.
(O testamento de
Sartre. Porto alegre, L&PM Editores, 1986, p. 63)
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Capítulo 5
- você também pode fazer
A seguir, você
vai se deparar com três textos que são verdadeiros
desafios à sua criatividade.
Primeiro, um
sonho. Ele concentra as idéias e o clima - psicológico
e filosófico - do existencialismo.
Em seguida, são
apresentadas duas reflexões de autores atuais que manifestam a
presença, na sensibilidade moderna, dos temas e do clima
existencialista.
Leia estas
páginas coma tenção, procurando situar-se no
ambiente. A seguir, com as idéias que lhe ocorrerem e com as
intuições suscitadas, monte uma peça, faça
uma música, escreva uma redação, faça
cartazes, onde você dá seu "toque", sua
interpretação da temática sartriana
Um sonho
Fernando José
de Almeida
Não tenho
certeza se a vida é um sonho ou se é outra coisa
diferente. Há noites (ou serão dias?) em que ele
aparece claríssimo para mim.
É manhã
brilhante e cheia de silêncio. Abro os olhos. Estranho.
Sinto tudo balançar. o ruído cadenciado de ondas do mar
me revela que estou dentro de um navio, no camarote de uma daquelas
naus do século XVIII, que povoam os filmes de corsários,
piratas e mocinhas de rodados vestidos. Invade-rne a sensação
de retorno: a séculos passados, à minha adolescência,
ou à minha origem mais íntima.
Subo para o convés.
Sou cercado por um imenso silêncio, maior que o barulho calmo
das ondas que batem a bombordo, muito maior que o ranger das cordas,
das amarras e do que o panejar das velas.
O silêncio,
sinto-o, parte de dentro de mim. Nada escuto a não ser o
pulsar de minha solidão. Estou irremediavelmente ali, diante
de um mundo que nada tem a ver comigo. Nada me é familiar, nem
o mar com sua majestade quase aterrorizante, nem este navio com suas
amarras, cordoalhas, velas, mastros. Nem a falta de horizontes.,,
Recupero-me do
susto. Esfrego os olhos: não há terra e nada vejo em
qualquer dos lados. Esta espécie de gelatina verde sobre a
qual me situo, sinto-a como prolongamento de meus músculos,
ainda moles de sono. São de gelatina os meus pensamentos,
Súbito,
deparo-me com urna tarefa urgente. É o meu barco: nele
vou traçar meu destino. Com ele vou conquistar meu porto.
Com ele vou saborear cada gota do meu viver.
Sinto-me febril.
Corro até a proa, pego no leme, subo até o topo do
mastro, confiro a âncora, invado porões e paióis.
Nada daquilo eu escolhi, nem seus apetrechos, nem seu porte, nem a
cor do seu oceano, nem a profissão que de agora em diante será
a minha. Sei apenas que tomar posse daquilo tudo e dar-lhe um rumo se
impõe como uma tarefa só minha. Insubstituível.
Angustiante. Sinto medo? Não sei. Acho que é um
sentimento doloroso e nobre ao mesmo tempo. De agora em diante, tudo
vai depender só de mim.
O timão gira
desgovernadamente à direita e à esquerda. Procuro em
toda parte. Onde haverá algum mapa ou roteiro que me indique
rumos? Mas é inútil.
Acima de mim o céu
de um sol que nasce manso e invejoso. Pra onde ir? Busco portos de
mercadores, baías de bom abrigo, enseadas de praias longes e
repletas de coqueiros sempre cheirando a trópicos? Não
há regras. Nem mesmo jogos. Tudo precisa ser definido.
As coisas se
aceleram. Crio portos que nunca vi. Pinto baías com cores
imaginárias, águas verdes e riquezas prateadas e
esmeraldas. Velocidade, rumo, pausas, riscos: eu os escolho. Ah! As
emoções desta viagem! Serão elas intoleráveis!
Humilhantes? Assombrosas? Objetos de orgulho? Tristes? Emocionantes?
Ou amáveis?
Isto tudo eu é
que escolho. Eu Próprio me defino, enquanto vou escolhendo a
viagem. Não para decidir se ela existirá ou não
(é inevitável que exista), mas para definir minha
maneira de ser e de fazê-la.
Pssst. Ouço
vozes, muitas vozes. Parece que vêm diretamente dos porões.
Largo o barco à deriva. Corro até os Porões.
Lá dentro, uma enorme confusão: caixas, tonéis,
fardos, pilhas de sacos de todas as formas, livros e cores sombrias.
Ao fim de um longo
corredor, no meio da Penumbra, vejo rostos. Encravados nesses
rostos, olhos me transmitem ondas de sentimentos que tento, mas não
consigo, dizer o que são. No entanto eu os sinto como se
fossem meus.
Formas humanas são
intraduzíveis, mas claras para mim, como o sol lá de
fora.
Esses olhos me
mostram quem eu sou. Vendo-me refletido neles, sinto-me existindo
melhor: com mais nitidez. 'Vêem-me, logo existo', penso
aliviado. Começo a entender melhor quem sou. Aqueles pequenos
espelhos de seus rostos não são eu, mas me revelam meus
ângulos brilhantes, obscuros, esfumaçados. O olhar dos
outros começa a fazer parte de minha vida e de meu destino.
Meu rumo já não será só meu. Responsável
sou: por mim e pelo outro.
Na frente daqueles
outros como eu, naquele navio que será o corpo de todos nós,
começo a pensar em voz alta. 'Agora sou tão responsável
por este navio como se o tivesse inventado e construído. Não
pedi para estar aqui, nem mesmo para nascer não pedi para ter
este sonho, mas vou sonhá-lo como se livremente o tivesse
escolhido, até que se materialize em realidade'.
Voltei ao convés
ainda aturdido pelas imagens, olhares e vozes do porão. Sinto
o quanto aquelas vidas estão junto comigo. Estarão
ainda presos? Estarão vivos, ou já se libertaram? Por
que não sobem quando os chamo? O que os prende?
Agora preciso
resolver sozinho, sem pontos de apoio, sem guias e, angustiantemente,
em nome de todos.
Nuvens cercam uma
parte do horizonte. A lua ainda marca um ponto no céu. O
sol, mais alto, não me sorri tão clemente como antes.
Cada um de meus atos
põe em jogo o universo, seu sentido e o lugar de nós
nele. Senti um quase pavor. Mas como poderia deixar de senti-lo, se
ninguém pode fazer os valores para mim, mas eu, mesmo é
que os construo a cada ato autêntico de minha vida?
O barco todo, com
suas velas e mastros, é sacudido por forte vento. Não
sonho mais. Tudo balança. Seguro firme o timão. A
viagem começou.
Meio suado, meio
angustiado, acordo com sobressalto. Sento-me na cama. O chão é
firme, mas sinto-me balançando. Um gosto estranho de sal
marinho me vem à boca, amarga de medo, um gosto de orgulho e
otimismo.
Livremente, construí
o meu sonho.
O amor
Milan Kundera
Mas seria amor?
Estava persuadido de que queria morrer ao lado dela e esse sentimento
era claramente exagerado: estava vendo-a então pela segunda
vez na vida! Não seria mais a reação histérica
de um homem que, compreendendo em seu foro íntimo sua
inaptidão para o amor, começa a representar para si
próprio a comédia do amor? Ao mesmo tempo, seu
subconsciente se mostrava tão covarde que escolhera para sua
comédia essa modesta garçonete de província que
não tinha praticamente possibilidade de entrar em sua vida.
Olhava os muros
sujos do pátio e compreendia que não saberia se era
histeria ou amor.
E, nessa situação
em que um verdadeiro homem saberia agir imediatamente, ele se
recriminava por negar assim ao mais belo instante de sua vida (está
de joelhos à cabeceira da moça, convencido de não
poder sobreviver à sua morte) a sua plena significação.
Torturava-se com
recriminações, mas terminou por se convencer de que era
no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode
saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não
se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la
nas vidas posteriores.
Seria melhor ficar
com Teresa ou continuar sozinho?
Não existe
meio de verificar qual é a boa decisão, pois não
existe termo de comparação. Tudo é vivido pela
primeira vez e sem preparação. Como se um ator
entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a
vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria
vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um
esboço.
No entanto, mesmo
"esboço" não é a palavra certa porque
um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a
preparação de um quadro, ao passo que o esboço
que é a nossa vida não é o esboço de
nada, é um esboço sem quadro.
Tomas
repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist
keinmat, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não
poder viver senão uma vida é como não viver
nunca.
A insustentável
leveza do ser
Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1986, p. 14.
A nossa liberdade
Dalmo de Abreu
Dallari
A liberdade é
fundamental para todas as pessoas. Por sua causa já houve
lutas, guerras e mortes, porque todos precisam de liberdade e às
vezes surgem homens que não querem que os outros sejam livres.
Mas o que é a
liberdade? Como é que se pode saber se uma pessoa tem
liberdade?
Ter liberdade é
poder fazer as coisas que a gente acha boas e agradáveis. Ter
liberdade é poder ficar junto das pessoas de quem a gente
gosta. Ter liberdade é poder brincar, estudar, trabalhar,
fazendo aquilo que nos deixa felizes. Ter liberdade é poder
ir a todos os lugares que a gente acha bonitos, ou onde existam
coisas que a gente quer ver ou fazer.
Ter liberdade é
poder falar, cantar, sorrir, amar, sonhar, sem ter medo de sofrer um
castigo.
Todos nós
queremos ser livres e achamos importante a nossa liberdade.
E a liberdade dos
outros? Não é justo pensar somente em nós, pois
todas as pessoas precisam de liberdade.
Por isso devemos
sempre lembrar dos outros, quando queremos fazer alguma coisa. É
preciso verificar se o que nós queremos fazer não vai
prejudicar alguém.
Mas também
precisamos ver se existe alguém que deseja muito alguma coisa,
ou que precisa fazer alguma coisa para ser feliz e que não
pode fazer isso porque é pobre ou porque uma pessoa má
está proibindo.
O mundo está
cheio de gente que não pode escolher o lugar onde viver com a
família, que não pode ter suas terras e sua casa e que
não pode escolher seu trabalho. Existem milhões de
crianças que não podem viver com os pais, que não
podem escolher uma roupa ou um brinquedo, que não podem ir à
escola, que se alimentam muito mal e às vezes até
passam fome. Muita gente passa a vida inteira fazendo só o
que os outros querem, sem poder fazer nada do que gostaria. Todas
essas pessoas não são livres e por isso não são
alegres nem são felizes. Isso não é justo e nós
devemos sempre ajudar as outras pessoas a conseguirem sua libertação.
Às
vezes existem pessoas que tiram a nossa liberdade, que nos obrigam a
fazer só o que elas querem e dizem que fazem isso para nos
proteger e nos ajudar. Nós não devemos concordar com
isso, porque quando tiram a nossa liberdade tudo fica triste, as
pessoas vivem contrariadas infelizes. Quando alguém quiser
nos obrigar a aceitar uma ordem, nós devemos querer
saber o motivo e devemos dar sempre nossa opinião. Desse modo
nós podemos obedecer sem perder a liberdade.
A liberdade é
muito importante para todas as pessoas, pois quem não a tem
não pode ser feliz.
Se todas as pessoas
defenderem a liberdade ela nunca vai acabar, as pessoas que hoje são
tristes vão ficar alegres quando forem livres. E o inundo
será muito melhor para todos.
Escrito
especialmente para o livro Criatividade, de Samir Meserani, editora
Saraiva.
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